Procissão do Corpo de Deus tem mais de quatrocentos e setenta anos
por Luís Mendes
Um dia solarengo e quente de Verão. Um vento leve e ameno. Uma cidade repleta de gente. Música e burburinho de fundo… Está o ambiente perfeito para a Procissão do Corpo de Deus, em Penafiel.
Os cartazes espalhados pela cidade da Confraria do Santíssimo Sacramento deixam saber que a festa irá tomar lugar naquela cidade. Embora sem data, horas ou localização, os cartazes ao longo de todos os postes da cidade denunciam que mais um ano, mais uma vez, a tradição da Procissão do Corpo de Deus cumprir-se-á na terra de Penafiel.
São 16h05. O calendário diz que é o terceiro dia do mês de Junho. Estaciona-se o carro nos arredores do Sameiro como é vulgarmente conhecido, e segue-se caminho a pé até ao centro da cidade. Só no centro, Penafiel tem quatro igrejas; o património religioso da cidade é muito vasto. Já há pequenos grupos de pessoas à espera de algo, a olhar, à sombra, tanto para a estrada como para o nada. O jeep da GNR também já marca presença e a polícia municipal passa devagar. Talvez esperem a passagem da Procissão tão afamada.
Ao longe já se ouve música de fanfarra. Pelas ruas as gentes andam e tornam a andar. A cidade está cheia de vida. As esplanadas estão completas, as varandas coloridas. Vêem-se escuteiros a passar, uma menina sorridente faz bolas de sabão no meio das tantas pessoas anónimas. Chegando atrás da Igreja Matriz, em frente à Câmara Municipal, tocam em dois coretos azuis e amarelos a Banda musical Rio Mau (fundada em 1920), e a Banda de Lagares (fundada em 1900). "É a 2€, é barato. Dá para a praia, dá para tudo. Olha o banquinho". O vendedor de bancos interrompe o momento musical e as bandas aceleram o ritmo. É o fim da música. Ouvem-se palmas longas e demoradas, até assobios. O aplauso termina. Mas há quem ache que não foi suficiente… Na varanda do lado direito dos coretos reacendem as palmas dois homens bem vestidos, de óculos de sol, uma jovem de vermelho com ar sério e uma senhora atenta já de muitas primaveras, que acaba por os acompanhar. Mais à frente, um rapaz, de sandálias gastas, vende pensos rápidos, ou pelo menos tenta. "Vamos fugir do sol", ouve-se. O calor aperta. O senhor dos bancos volta a apregoar os seus produtos e as bolas de sabão no ar repetem-se.
Da Praça Municipal à Avenida Egas Moniz, a enchente de pessoas é notória. São agora 16h35. As pessoas espalham-se ao longo da Avenida, baixa de Penafiel, à sombra ou não, formando um verdadeiro cordão humano. Do lado direito, ouve-se um balão a estoirar e uma criança a ficar sem nada nas mãos. "Lá se foi 1€", dizem os adultos que estavam com ele, muito provavelmente os familiares. Nas varandas estão estendidas toalhas compridas, daquelas antigas, bordadas (quiçá à mão), que fazem lembrar os tempos da monarquia. As pessoas aguardam ansiosamente nas suas varandas, com o que podem para as proteger do sol, sejam guarda-chuvas ou guarda-sóis de praia.
Seguindo pela Avenida Egas Moniz, encontram-se mais dois palcos com músicos a dispersar e a (des)montar instrumentos. Nos palcos pode ler-se o slogan da Câmara Municipal, «Sentir Penafiel». A Assembleia Penafidelense está aberta, mas a placa à entrada avisa «reservado a sócios». Um cartaz sobre as festas da cidade e do concelho e a solenidade do Corpo de Deus está exposto à entrada da Assembleia.
À frente da Igreja do Calvário, já quase ao fundo da Avenida, estão ciganos a vender balões com formatos que fazem as delícias dos mais novos. Nos separadores em paralelo da Avenida, estão miúdos sentados, vestidos de cavaleiros e anjos, com cara de quem está com calor. Ainda assim, todas as faixas etárias estão representadas naqueles grupos de pessoas, já preparados para a Procissão. Nos jardins em frente à Igreja há pessoas deitadas na relva, outras sentadas em bancos. Todos procuram a sombra. No parque em baixo, as bancas e barracas de comércio são muitas e variadas, para todos os gostos.
Dentro da Igreja está pouca gente. "A que horas sai a Procissão?", pergunta uma senhora a outra, depois de ter acendido duas velas eléctricas com 20 cêntimos. "Parece que é às cinco e meia. Não sou de cá, sabe". A senhora de cabelo branco traz consigo um ar triste. À entrada da Igreja estão duas senhoras também de idade. "Já venho há mais de 30 anos ver a Procissão. É a maior festa do Corpo de Deus em Portugal". A senhora está sentada e tapa a cabeça do sol. "É muita linda a Procissão e muita antiga, já antes de haver a cidade de Penafiel havia esta festa". Na verdade, esta Solenidade realiza-se já desde 1540, tendo assim mais de 4 séculos e meio. Este ano completa 470 anos.
São 17h30 e a Procissão ainda não saiu. O Baile dos Turcos já se prepara para seguir na Procissão. "É uma tradição com mais de oitenta anos que acabou e no ano passado a Câmara decidiu reavivá-la. Este baile conta a história de uma rainha cristã que casou com um rei turco e depois queria deixá-lo. O rei mandou para cá as suas tropas. S. Jorge lutou e morreu. Mas ressuscitou e venceram os cristãos". Dr.ª Maria dos Anjos é a líder deste grupo.
Os bombos de S. Lourenço, de camisas amarelas, de Marco de Canaveses, tocam bem alto. "Já vem aí", diz uma mulher na assistência com a calma necessária. Dois cavalos brancos e um jeep da polícia municipal vão à frente na Procissão. Um rapaz alto e esguio filma com a sua samsung de tecnologia de ponta. Ouvem-se gritos de guerra. O grupo dos Torcatos passa, a tocar e a entoar. A sua indumentária é confundível com a dos escuteiros. O dragão verde passa a seguir, é o Dragão de S. Jorge. Os bombos continuam a tocar. De seguida passa o Baile dos Pauzinhos, o dos Pedreiros, das Floreiras e o dos Turcos. Todos vestidos a preceito. Estes já tinham actuado às 15h30 nos Paços do Município, excepto o Baile das Floreiras. Um cavalo relincha e desobedece ao dono. O outro cavalo que vem atrás transporta um boneco no dorso, e vários homens à volta que parecem ser vassalos de um nobre. Porém, o nobre em cima do cavalo fica sem cabelo, e um dos seus fiéis pajens pede emprestado um banco (daqueles que se apregoavam e vendiam), a um homem na audiência para lhe compor o cabelo. "Ficou careca", dizem as pessoas entre risos.
É a vez das lavradeiras passarem com bois gigantes que impõem respeito pela sua envergadura. Estes levam açoites dos lavradores, para andarem para a frente. Dois destes grandes animais puxam um carro com pessoas lá dentro, que atiram pétalas de rosas. As pessoas que assistem fazem um som de espanto e receio ao mesmo tempo, por causa do tamanho dos animais. Após isto, passa um grupo de crianças de batinas, com lenços brancos ao pescoço.
São agora 17h52 e o termómetro chega aos 38o C. A Banda Musical e Cultural do Vale do Sousa segue em frente. Não demoram a chegar os estandartes, seguidamente dos escuteiros de Penafiel. Passam as cruzes, representando cada paróquia e várias etapas da Bíblia, representadas por miúdos e graúdos.
Às 17h57 os foguetes rebentam no ar. Três minutos depois, a Procissão dá a volta à Avenida. Os bombos fazem-se ouvir, os GNR a cavalo retiram as espadas, os sinos tocam a rebate e as várias Confrarias desfilam agora. É uma mistura de tradições, culturas, saberes. Já se avista o Corpo de Deus em frente à Igreja. O cheiro a incenso é intenso. É momento de silêncio. À passagem do Corpo de Deus, todos se ajoelham ou fazem uma vénia com a cabeça. É a Procissão Corpus Christi. Entende-se então o porquê de horas à espera, ao sol ou ao calor, num feriado do mês de Junho, em plena época balnear.
Cumpriu-se a tradição. Valeu a pena.
Os cartazes espalhados pela cidade da Confraria do Santíssimo Sacramento deixam saber que a festa irá tomar lugar naquela cidade. Embora sem data, horas ou localização, os cartazes ao longo de todos os postes da cidade denunciam que mais um ano, mais uma vez, a tradição da Procissão do Corpo de Deus cumprir-se-á na terra de Penafiel.
São 16h05. O calendário diz que é o terceiro dia do mês de Junho. Estaciona-se o carro nos arredores do Sameiro como é vulgarmente conhecido, e segue-se caminho a pé até ao centro da cidade. Só no centro, Penafiel tem quatro igrejas; o património religioso da cidade é muito vasto. Já há pequenos grupos de pessoas à espera de algo, a olhar, à sombra, tanto para a estrada como para o nada. O jeep da GNR também já marca presença e a polícia municipal passa devagar. Talvez esperem a passagem da Procissão tão afamada.
Ao longe já se ouve música de fanfarra. Pelas ruas as gentes andam e tornam a andar. A cidade está cheia de vida. As esplanadas estão completas, as varandas coloridas. Vêem-se escuteiros a passar, uma menina sorridente faz bolas de sabão no meio das tantas pessoas anónimas. Chegando atrás da Igreja Matriz, em frente à Câmara Municipal, tocam em dois coretos azuis e amarelos a Banda musical Rio Mau (fundada em 1920), e a Banda de Lagares (fundada em 1900). "É a 2€, é barato. Dá para a praia, dá para tudo. Olha o banquinho". O vendedor de bancos interrompe o momento musical e as bandas aceleram o ritmo. É o fim da música. Ouvem-se palmas longas e demoradas, até assobios. O aplauso termina. Mas há quem ache que não foi suficiente… Na varanda do lado direito dos coretos reacendem as palmas dois homens bem vestidos, de óculos de sol, uma jovem de vermelho com ar sério e uma senhora atenta já de muitas primaveras, que acaba por os acompanhar. Mais à frente, um rapaz, de sandálias gastas, vende pensos rápidos, ou pelo menos tenta. "Vamos fugir do sol", ouve-se. O calor aperta. O senhor dos bancos volta a apregoar os seus produtos e as bolas de sabão no ar repetem-se.
Da Praça Municipal à Avenida Egas Moniz, a enchente de pessoas é notória. São agora 16h35. As pessoas espalham-se ao longo da Avenida, baixa de Penafiel, à sombra ou não, formando um verdadeiro cordão humano. Do lado direito, ouve-se um balão a estoirar e uma criança a ficar sem nada nas mãos. "Lá se foi 1€", dizem os adultos que estavam com ele, muito provavelmente os familiares. Nas varandas estão estendidas toalhas compridas, daquelas antigas, bordadas (quiçá à mão), que fazem lembrar os tempos da monarquia. As pessoas aguardam ansiosamente nas suas varandas, com o que podem para as proteger do sol, sejam guarda-chuvas ou guarda-sóis de praia.
Seguindo pela Avenida Egas Moniz, encontram-se mais dois palcos com músicos a dispersar e a (des)montar instrumentos. Nos palcos pode ler-se o slogan da Câmara Municipal, «Sentir Penafiel». A Assembleia Penafidelense está aberta, mas a placa à entrada avisa «reservado a sócios». Um cartaz sobre as festas da cidade e do concelho e a solenidade do Corpo de Deus está exposto à entrada da Assembleia.
À frente da Igreja do Calvário, já quase ao fundo da Avenida, estão ciganos a vender balões com formatos que fazem as delícias dos mais novos. Nos separadores em paralelo da Avenida, estão miúdos sentados, vestidos de cavaleiros e anjos, com cara de quem está com calor. Ainda assim, todas as faixas etárias estão representadas naqueles grupos de pessoas, já preparados para a Procissão. Nos jardins em frente à Igreja há pessoas deitadas na relva, outras sentadas em bancos. Todos procuram a sombra. No parque em baixo, as bancas e barracas de comércio são muitas e variadas, para todos os gostos.
Dentro da Igreja está pouca gente. "A que horas sai a Procissão?", pergunta uma senhora a outra, depois de ter acendido duas velas eléctricas com 20 cêntimos. "Parece que é às cinco e meia. Não sou de cá, sabe". A senhora de cabelo branco traz consigo um ar triste. À entrada da Igreja estão duas senhoras também de idade. "Já venho há mais de 30 anos ver a Procissão. É a maior festa do Corpo de Deus em Portugal". A senhora está sentada e tapa a cabeça do sol. "É muita linda a Procissão e muita antiga, já antes de haver a cidade de Penafiel havia esta festa". Na verdade, esta Solenidade realiza-se já desde 1540, tendo assim mais de 4 séculos e meio. Este ano completa 470 anos.
São 17h30 e a Procissão ainda não saiu. O Baile dos Turcos já se prepara para seguir na Procissão. "É uma tradição com mais de oitenta anos que acabou e no ano passado a Câmara decidiu reavivá-la. Este baile conta a história de uma rainha cristã que casou com um rei turco e depois queria deixá-lo. O rei mandou para cá as suas tropas. S. Jorge lutou e morreu. Mas ressuscitou e venceram os cristãos". Dr.ª Maria dos Anjos é a líder deste grupo.
Os bombos de S. Lourenço, de camisas amarelas, de Marco de Canaveses, tocam bem alto. "Já vem aí", diz uma mulher na assistência com a calma necessária. Dois cavalos brancos e um jeep da polícia municipal vão à frente na Procissão. Um rapaz alto e esguio filma com a sua samsung de tecnologia de ponta. Ouvem-se gritos de guerra. O grupo dos Torcatos passa, a tocar e a entoar. A sua indumentária é confundível com a dos escuteiros. O dragão verde passa a seguir, é o Dragão de S. Jorge. Os bombos continuam a tocar. De seguida passa o Baile dos Pauzinhos, o dos Pedreiros, das Floreiras e o dos Turcos. Todos vestidos a preceito. Estes já tinham actuado às 15h30 nos Paços do Município, excepto o Baile das Floreiras. Um cavalo relincha e desobedece ao dono. O outro cavalo que vem atrás transporta um boneco no dorso, e vários homens à volta que parecem ser vassalos de um nobre. Porém, o nobre em cima do cavalo fica sem cabelo, e um dos seus fiéis pajens pede emprestado um banco (daqueles que se apregoavam e vendiam), a um homem na audiência para lhe compor o cabelo. "Ficou careca", dizem as pessoas entre risos.
É a vez das lavradeiras passarem com bois gigantes que impõem respeito pela sua envergadura. Estes levam açoites dos lavradores, para andarem para a frente. Dois destes grandes animais puxam um carro com pessoas lá dentro, que atiram pétalas de rosas. As pessoas que assistem fazem um som de espanto e receio ao mesmo tempo, por causa do tamanho dos animais. Após isto, passa um grupo de crianças de batinas, com lenços brancos ao pescoço.
São agora 17h52 e o termómetro chega aos 38o C. A Banda Musical e Cultural do Vale do Sousa segue em frente. Não demoram a chegar os estandartes, seguidamente dos escuteiros de Penafiel. Passam as cruzes, representando cada paróquia e várias etapas da Bíblia, representadas por miúdos e graúdos.
Às 17h57 os foguetes rebentam no ar. Três minutos depois, a Procissão dá a volta à Avenida. Os bombos fazem-se ouvir, os GNR a cavalo retiram as espadas, os sinos tocam a rebate e as várias Confrarias desfilam agora. É uma mistura de tradições, culturas, saberes. Já se avista o Corpo de Deus em frente à Igreja. O cheiro a incenso é intenso. É momento de silêncio. À passagem do Corpo de Deus, todos se ajoelham ou fazem uma vénia com a cabeça. É a Procissão Corpus Christi. Entende-se então o porquê de horas à espera, ao sol ou ao calor, num feriado do mês de Junho, em plena época balnear.
Cumpriu-se a tradição. Valeu a pena.