Editorial
Europa, acordar da realidade para o sonhoDebaixo de uma chuva densa e permanente de conceitos técnicos, de gíria económica e de certezas matemáticas sobre a incerteza dos mercados, os europeus
parecem cada vez mais mergulhados num curso intensivo de macro gestão e economia política que não pediram nem querem frequentar. Tecnocratas que assumiram a posição docente traçam no quadro negro um ainda mais escuro, e mediante a desesperante complexidade dos problemas os mesmo entendidos apresentam-se, eles próprios, como única e clarividente solução. De sentidos postos na reunião do próximo dia 9, já todos estamos conscientes e convencidos de que há um problema sério: de que a balança económica do mundo deixou de pender em nosso benefício; de que o crescimento está a fazer do investido pouco ou menos, de que a nossa moeda foi mal desenhada e de que há povos de primeira e povos não cumpridores com orelhas de burro nos cantos da Europa e do Euro. Os “professores” dizem-nos que as taxas de juro crescem e que é necessária austeridade. Mas será que estamos atentos ao verdadeiro problema? Será que estes, arautos de outras desgraças, se preocupam com o que de mais essencial se pode perder? Apesar do que nos fazem entender os mercados e os tecnocratas seus funcionários, o que nestes dias se discute não são as dívidas públicas ou privadas, não são os especuladores e investidores. O que está realmente em causa chama-se Europa. E muito mais do que um continente, Europa é o mais alto bastião de civilização alguma vez atingindo pela humanidade. Fénix do rescaldo de duas tremendas guerras, a Europa foi pensada por aqueles que quiseram jurar nunca mais. É a comunhão entre Homens que de tão doridos de se atacarem, se perdoaram. A Europa é paz, prosperidade, é fraternidade. A Europa é o desejo de harmonia. É protecção social. E é-o para que os seus povos se sintam plenos e satisfeitos, para que se cumpram todas as necessidades. Há educação, saúde, segurança, não há fronteiras. É-o para que nenhum Homem em fome se levante contra o seu semelhante. A Europa existe no equilíbrio irreprensível entre o interesse do indivíduo e o da sociedade. Mas as cinzas foram arrefecendo no esquecimento e a boa vontade dos Estados foi aproveitada por interesses egoístas. Uma outra guerra mais subreptícia foi medrando. Uma guerra na interpretação do conceito de bem estar, de direitos e respectivos deveres. Uma guerra ideológica. Para obter benefícios ilícitos e proteger devaneios, lobbies obrigaram os governos a desregulamentar a banca e os mercados. Os riscos do investimento de privados foram suportados pelos Estados, num neo-liberalismo disfuncional que não deixa as empresas tomarem as consequências nefastas de má gestão. Um rodopio contínuo de negócios não tributados tirou, e continua a tirar, fatias gordas dos diversos PIB para offshores. Ininputáveis gestores da coisa pública atribuíram, a amigos e financiadores de partido, obras faraónicas sem pés, sem cabeça e sem aplicação. Décadas de um fluxo permanente do erário público para o tesouro pessoal de alguns esvaziou as nações de poder. E os estados aparecem agora indefesos e endividados, fracos para resistir a especuladores e mercados, à mercê de interesses ainda mais vorazes, muitas vezes defendidos pelos mesmos tecnocratas que se oferecem como única solução. Sem que se resolva nenhum dos verdadeiros problemas de fisco, sem que se acabe a desregulamentação da banca e dos mercados, sem que se tribute devidamente um sistema financeiro que quer existir acima e melhor do que o sistema económico que o sustenta, sem que haja um sério ataque aos offshores; pede-se aos europeus que cedam tudo aquilo que conquistaram em prosperidade, saúde, educação, protecção social. Austeridade...Terão os povos da Europa força para exigir a rectificação? Estarão eles sequer conscientes de que está nas suas mãos? Talvez a Europa seja demasiado boa para alguma vez ter saído do onírico. Talvez os europeus não estejam ao nível daquilo que construíram. Desistir da Europa - da Europa apostada na equidade, no valor do individuo sem prejudicar a sociedade - será sair de um sonho tornado realidade e ficar de novo a sonhar. Como as pirâmides de Gizé e o Vale dos Reis, como Chichén Itzá ou Angkor Wat, a Europa, que tem como “valor maior” o pecuniário, corre o risco de se tornar uma ruína, a casca vazia daquela que foi a maior civilização do seu tempo. |